A história de uma médica nada afeita a crianças

“A Pediatra” (Ed. Companhia das Letras) é história de uma neonatologista chamada Cecília, uma mulher distante da sua profissão que busca não criar laços com seus pacientes e suas famílias. A sua carreira foi desenvolvida não pela paixão à Medicina, mas pela comodidade de seguir apenas a profissão do seu pai (médico), que a incentivou a entrar nesse ofício, e da sua mãe (enfermeira). Ou seja, escolheu a profissão mais cômoda e que logo lhe trouxesse estabilidade e prestígio. Com um humor mordaz e, inconfundivelmente, singular, o livro no coloca de frente para essa personagem que é o oposto do que imaginamos ser uma pediatra: uma mulher sem espírito maternal, pouco apreço por crianças e zero paciência para os pais e mães que as acompanham.

Ao mesmo tempo, ela vive uma montanha russa de sentimentos que passam pela depressão do marido (com quem já não esboça nenhum tipo de relação mais próxima), o envolvimento com um homem casado (cuja esposa está grávida e é atendida no parto pela própria Cecília) e o despertar dos primeiros sentimentos de carinho e cuidado com o filho dele, Bruninho (o que acaba gerando reflexões profundas sobre a visão de si mesma e sobre os caminhos que a vida lhe reserva).

Além desse turbilhão presente em sua vida pessoal, a sua vida profissional também passará por mudanças com a chegada de um novo colega (um médico humanista que preza pelo contato com os pais e filhos) e trabalha com doulas em partos naturais. Os métodos de trabalhos opostos acabam colocando a personagem para fora da sua zona de conforto. A partir daí, sua barreira emocional, criada em seus atendimentos, é colocada à prova e lhe traz novos desafios a serem encarados.

Narrativa em primeira pessoa que desconstrói nossa visão sobre uma pediatra

O texto de “A Pediatra” trabalha muito bem a crueza e a objetividade da personagem, compondo isso com uma narrativa direta que desconstrói a visão que temos sobre uma médica que coloca sua prática profissional motivada unicamente pela técnica. As atitudes de Cecília, nas 160 páginas do livro, se alternam com seus pensamentos a todo momento e nos impacta com uma narrativa que introduz reflexões sobre o papel da mulher na sociedade, a desigualdade social, a normalização do machismo e o ideal de maternidade.

A protagonista foge dos padrões esperados e isso pode fazer com que algumas pessoas a encarem como uma antagonista. Por mais absurdos que possam parecer certos comportamentos da médica, suas motivações são guiadas pela sua grande fragilidade e egoísmo (o que não nos permite fazer julgamentos mais contundentes sobre a sua persona). No final, para alguém que detesta a humanização das relações, a protagonista de “A Pediatra” nos revela ser tão humana quanto qualquer uma de nós. Vale a pena conferir!

Andréa Fátima dos Santos, conhecida como Andréa del Fuego, é uma escritora paulistana graduada em Filosofia pela USP e mestre pela mesma instituição. Romancista, contista e cronista, é autora também de livros infantis e juvenis. Tem 8 livros publicados e recebeu o prestigiado Prêmio José Saramago já no seu primeiro romance “Os Malaquias” (2010). Ao longo do seu percurso, Andréa também deu espaço à criação de artigos, publicando em sites, blogs e revistas digitais, como a “Escritoras Suicidas” (onde escreveu de 2005 a 2008). Colabora, desde 2010, para o programa “Entrelinhas” (TV Cultura), apresentando reportagens sobre grandes nomes da literatura.